Olá.
Eu sou Tiago Rogero.
Este é o 3º episódio do Negra Voz Podcast, o podcast de História Negra do Brasil do Jornal O Globo.
DANDARA: “Eu sempre digo que a culinária africana, que na verdade o meu fazer, essa comida, é a forma como eu me sinto muito conectada com a minha ancestralidade, sabe? É uma forma de me conectar porque a gente sabe muito pouco da nossa História. A verdade é essa. Às vezes você conversa com alguém que é descendente de italiano, de espanhol, eles conseguem ir lá atrás na sua História. E a gente não consegue, infelizmente. Nossa história foi apagada”
Esta é a chef Dandara Batista, carioca, 34 anos. Ela é a dona do restaurante Afro Gourmet, no Grajaú, especializado em culinária dos países africanos.
BENÊ: “Eu nunca imaginava que fazer um simples feijão com arroz pudesse mudar a vida de uma pessoa como mudou a minha, nascida lá no meio do mato… Eu peguei esse carinho da gastronomia da minha avó. Porque nós somos, depois da Lei Áurea, meus antepassados foram registrados com nomes de italianos, né? Eu sou Benedita Ricardo, a minha avó era Eugênia Ponciana… Isso é gozado, né? Tudo nome de italiano ou alemão, o sobrenome”
E esta é a chef Benê Ricardo. Ela foi a primeira mulher brasileira a se tornar chef de cozinha. A conseguir um diploma de chef. Isso em 1981.
Benê Ricardo é a primeira dama da gastronomia brasileira.
Mas… você já ouviu falar dela?
BIANCA: “E uma coisa que me surpreendeu muito da história da Benê é o quanto os outros cozinheiros, os chefs, reconheciam ela… Reconheciam o talento que ela tinha, o trabalho que ela fazia, a grande chef que ela era… Mas ela não teve oportunidade, provavelmente por causa do machismo e do racismo, de ser reconhecida pelo grande público. Ela é uma dessas heroínas silenciosas, né? Que conquistaram muitas coisas, que abriram caminhos para todas nós, mas que nunca obteve esse reconhecimento, pelo menos não em vida, né?”
Esta é a Bianca Briguglio. Ela é cientista social e está fazendo doutorado na Unicamp. A tese dela é: “Lugar de mulher é na cozinha? A divisão sexual do trabalho em cozinhas profissionais”. Foi durante essa pesquisa para o doutorado que ela acabou conhecendo a história da chef Benê Ricardo. A Bianca fez uma longa entrevista com ela e gentilmente compartilhou com o podcast alguns trechos dessa gravação.
BENÊ: “Eu acho que abri muito caminho para as mulheres né? (abriu, nossa senhora, abriu sim)”
((( Trilha )))
BIANCA: “Foi assim. A Benê nasceu em São José do Mato Dentro, que é zona rural do município de Ouro Fino”
Isso em Minas Gerais, em 1944.
BIANCA: “E aí ela sempre falava disso dizendo que ela nasceu no meio do mato, que ela era da roça, que ela era do meio do mato”.
Essa gravação pela internet é porque a Bianca está em Paris concluindo o doutorado.
BIANCA: “E essa infância dela, praticamente, era composta por dois personagens, que eram também duas mulheres, que eram a mãe e a avó. E as duas ocupam pólos muito diferentes na lembrança dela. Então, a mãe era uma mulher violenta, agressiva. Ela sempre falava: ‘Minha mãe me batia, minha mãe não tinha paciência’, sempre remete a essa figura rigorosa. E a avó, que era costureira e também cozinhava, era uma mulher muito generosa, carinhosa, que cuidava da Benê”.
Benedita Ricardo de Oliveira não falava muito do pai. Pelo pouco que ela se lembrava, ele bebia muito e batia na mãe dela. Foi da avó, dona Eugênia Ponciano, que Benê herdou o talento e os conhecimentos na cozinha. Nessa entrevista que ela concedeu para a Bianca, a Benê conta que, num intervalo muito curto de tempo, perdeu a mãe e a avó.
Ela ficou sozinha aos 12 anos de idade.
BENÊ: “E a minha mãe morreu antes dela, durou três dias, minha mãe morreu rápido… Fiquei com a minha avó. E a minha avó faleceu, fiquei sozinha.”
BIANCA: “A família dos vizinhos meio que pega a Benê pra criar, e pegar ela pra criar significa que levaram ela pra casa pra fazer serviço doméstico. Pegaram a menina pra ser empregada doméstica. Só que eles maltratavam muito a Benê, umas coisas assim… Eu nunca vou esquecer porque ela me contava essas coisas rindo, e eram horríveis”
BENÊ: “Essa família viu que eu era sozinha, ele tinha fazenda lá em Ouro Fino e a esposa dele era de família portuguesa. Então eu tinha que encerar o chão, passar escovão, encerar… Ia tomar banho, eles desligavam o chuveiro… Eu dormia lá no… no fundo, aquele frio! Em 1959 era frio aqui, né? Era tão frio e os cachorros cobriam as minhas pernas… Por isso que eu gosto de cachorro, sabe? Esquentava os meus pés”.
BIANCA: “E ela me contou também que ela tinha perdoado, que ela não tinha raiva, porque ela não sabia que aquilo eram maus tratos. ela falou assim pra mim: ‘Fia, não sabia que tinha coisa melhor’. Então, ela convivia com aquilo. E aí, em um momento essa família vai pra Santos, leva ela, e aí uma outra família vizinha em Santos fica com pena do estado que ela está e uma das mulheres leva ela pra trabalhar com outra família. Ou seja, ela continua sendo empregada doméstica. Acho que ela tinha 15 anos já.”
Essa outra casa era de uma família de alemães. E Benê fazia de tudo lá: cuidava das crianças, limpava a sujeira dos cachorros, lavava, passava… E cozinhava. Num determinado momento, a família toda se mudou para a Alemanha… e levou a Benê junto.
BIANCA: “Ela volta praticamente especialista em comida alemã”
BENÊ: “Eu fiquei 18 anos com essa família alemã. E a minha patroa comprava revista (não entendi) e assinava pra mim a revista… Cláudia. E aí inscreveu dentro, olha pra você ver a vida como é que é. ‘Manda uma receita e ganha um prêmio'”
A Benê mandou a receita, uma Torta de Temperos, e ganhou! Primeiro lugar. O prêmio era a possibilidade de trabalhar na Cozinha Experimental da Revista Cláudia. Resumindo bem, era um lugar onde a revista testava as receitas enviadas pelos leitores, e depois fotografava os pratos.
Feliz da vida com o prêmio, a Benê foi contar a boa notícia à patroa dela.
BENÊ: “Eu tinha ganhado 1º lugar, o prêmio. Eu tinha carteira… Eu fui uma das primeiras empregadas registradas, porque alemão gosta das coisas tudo certinho. Aí olha pra você ver alemão como é que é. Ela falou: ‘Olha, só que não dá mais pra você ficar aqui. Eu tenho que arrumar outra pessoa. Sei que não vai ter outra pessoa que faz o que você faz, mas aí você vai ter que ir todo dia pra firma que num dá pra fazer'”.
Foram 18 anos que terminaram assim.
Enfim, vida nova! Benê agora finalmente poderia trabalhar só como cozinheira.
BIANCA: “Só que ela vai trabalhar na editora Abril e ela só fica lá três meses. Ela me disse que ela não passou no exame psicotécnico. Eu nunca soube que para trabalhar em editora tinha que fazer exame psicotécnico. Mas ela também me contou que viveu muita sabotagem nesse período que ela chegou lá. E aí ela, na gravação ela fala assim, que uma das meninas que trabalhava lá ficou meio enciumada, ficou um pouco enciumada de ela ter chegado lá”
Por exemplo: um dia, a Benê fez um sorvete e colocou no freezer. Era para uma foto que seria clicada no dia seguinte.
BIANCA: “E ela disse que a menina foi lá e tirou o sorvete do congelador, botou na geladeira, e, no dia seguinte, não tinha sorvete para tirar foto. Passado esses três meses de experiência, a revista Cláudia falou muito obrigada, mas você não vai trabalhar aqui. E aí a Benê ficou sem o emprego que ela estava há 18 anos na família, sem o trabalho na revista Cláudia”.
Ela precisava se virar. Conseguiu trabalho numa cozinha industrial e, com o tempo, começou também a fazer jantares. Virou banqueteira, o que hoje a gente chama de cattering. O trabalho dela foi fazendo sucesso, as pessoas foram indicando ela umas para as outras, até que um dia a Benê foi convidada a fazer um jantar alemão, que era uma das especialidades dela.
BIANCA: “Ela foi servir esse jantar alemão, e, no final do jantar, um dos convidados pediu pra conhecer a cozinheira. E esse convidado tinha certeza de que ia aparecer uma (palavra em alemão), que ia aparecer uma alemã, porque a comida estava muito boa. E aí a Benê me contando: ‘Você imagina, minha filha. Daí aparece eu'”.
BENÊ: “Pediram a comida alemã, então eu fiz (fala o nome de alguns pratos alemães). Aí ele queria conhecer a alemã. Aí a dona, a mulher do… ‘Ah, nós temos uma alemã na cozinha'”.
BIANCA: “O tal convidado ficou surpreso de que não era uma alemã, de que não era uma mulher branca que estava cozinhando. E essa convidado era o presidente Ernesto Geisel.
BENÊ: “E ele chegou, o presidente Geisel, e fez assim. Uma negona, né?, alta. Magriiinha, e eu com aquela roupinha… Ele olhou bem, falou: ‘Podia ser uma comida mineira, menos alemã'”.
BIANCA: “Ele ficou muito surpreso, que era a Benê, aí um outro convidado que estava nesse jantar era o José Papa Júnior, que era presidente da confederação do comércio, na época. E assim, normal que eles estavam ali jantando juntos, né, o presidente militar e o presidente da confederação do comércio. Superamigos. E o Geisel sugeriu pro José Papa Júnior que ele oferecesse uma bolsa pra Benê fazer o curso de primeiro cozinheiro”.
Isso foi em 1979, durante a ditadura militar.
Então pensa só, se não parece quase um conto de fadas.
A primeira mulher brasileira a se formar chef de cozinha, uma mulher negra, só conseguiu isso graças a uma indicação do então presidente da ditadura, Ernesto Geisel.
Só que… não é bem assim.
BIANCA: “É interessante que todas as histórias que eu li contavam que ela tinha ganhado bolsa porque o presidente ficou muito impressionado em como ela era talentosa. Mas o que a Benê me contou é que, na verdade, no Senac ninguém entendia de comida alemã. Ela foi pra fazer o curso, mas ela também deu o curso. Ela também ensinou as pessoas lá sobre essa comida”.
A Benê aceita e vai fazer o curso.
BIANCA: “Ela é a primeira mulher a fazer o curso de cozinheira no Brasil. Aí tem a até a foto, no portfólio dela, é um monte de homem, uns 40 homens e ela”.
Hoje em dia, há uns 200 cursos de graduação em Gastronomia no Brasil, segundo o Ministério da Educação. Mas eles só começaram a surgir no fim dos anos 1990, começo dos anos 2000.
O primeiro curso para a formação de Cozinheiros, essa era a palavra, foi criado em 1969, pelo Senac. Curso de 1º Cozinheiro. As aulas levavam uns dois anos.
BIANCA: “Até os anos 2000, a gastronomia não era um assunto quente, então ela não estava presente na vida das pessoas como ela está hoje por causa da internet, das redes sociais, por causa dos programas de televisão”
O curso do Senac era em Águas de São Pedro, uma cidade do interior de São Paulo que, hoje, tem pouco mais de 3 mil habitantes, segundo o IBGE. Fica a 180 quilômetros da capital.
Em 1981, doze anos depois de ser criado, o curso recebeu sua primeira mulher.
Tinha alojamento para todos os homens, mas não para a Benê. Ela precisou ir para uma pensão e, para pagar a hospedagem, trabalhava lá nas, entre aspas, horas vagas. Quando não estava no curso, ela limpava a pensão.
DANDARA: “Meu pai sempre cozinhou muito bem, ele era a minha referência de pessoa que cozinhava, minha avó materna também sempre cozinhou muito, e a gente morou a infância toda praticamente junta, e sempre fui muito de observar. Então sempre gostei muito de cozinhar, mas nunca pensei muito nisso como uma profissão”
A Dandara Batista dos Santos Araújo nasceu em 11 de janeiro de 1985. É filha de Jurema Batista e de Paulo Santos. A Jurema é também uma figura histórica do ativismo e da política do Rio. Já foi vereadora e deputada estadual.
DANDARA: “Nasci na comunidade do Andaraí, minha mãe era líder comunitária.
É aquele mesmo Andaraí da música do Nei Lopes.
((( Trecho da música )))
DANDARA: “Vivi na comunidade por muitos anos. Sempre vivi no bairro, mesmo depois de crescer a gente continuou morando no bairro e não mais na comunidade”
O nome dela já diz muito sobre os pais, que sempre foram muito ligados ao Movimento Negro. Dandara era o nome de uma das líderes do Quilombo de Palmares. Ela era companheira de Zumbi. Isso no século XVII, na região da Serra da Barriga, que hoje fica no estado de Alagoas.
Voltando ao presente, os irmãos da chef Dandara também têm nomes poderosos:
DANDARA: “Eu sou Dandara, minha irmã mais nova é Nianuí e meu irmão mais novo é Nassor Ébano. A gente até saiu numa matéria, crianças ainda, sobre nomes africanos”
Como profissão, a Dandara pensou primeiro em… Jornalismo.
Dandara: Eu sempre gostei muito de assistir jornal, de ler jornal, e sempre me imaginei nessa profissão. Mas a questão do não ver muitas pessoas como eu na área me deixava à s vezes na dúvida se aquele era ou não o caminho a seguir, mas resolvi me decidir por isso mesmo”
Ela se formou e é jornalista até hoje. Paralelamente ao restaurante, trabalha como apresentadora na TV da Assembleia Legislativa do Rio.
Mas a relação com a cozinha sempre esteve presente. Os amigos diziam:
DANDARA: “Poxa, você cozinha tão bem, por que você não faz isso como um projeto de vida, por que não faz alguma coisa em relação a isso?”
E ela fez.
DANDARA: “Eu sentia muita falta de ter alguma coisa de culinária africana. Eu sempre gostei muito da culinária baiana, meu avô é baiano, e eu tinha muito interesse na culinária baiana, comecei a pesquisar e vi que ela era completamente influenciada pela culinária africana”
Para aprender um pouco mais das técnicas, a Dandara fez uma graduação em Chef Executiva de Cozinha.
Dandara: “E a gente não aprende nada de culinária africana nesses cursos. É uma tristeza. Eu aprendi até a culinária húngara, que, nossa, como assim?, é tão distante da nossa culinária… E culinária africana, que é tão próxima, a gente não tinha nada”
Pesquisando por conta própria, ela decidiu criar o projeto Afro Gourmet, em janeiro de 2016.
Uma vez por mês, ela levava pratos tradicionais de países africanos para o Dida Bar e Restaurante, na Praça da Bandeira.
DANDARA: “O primeiro prato que eu fiz chama arroz de hauçá, que é um prato que ele é feito com leite de coco, arroz de leite de coco, camarão seco, quando ele é utilizado para comida de santo. No restaurante, eu sirvo com camarão fresco e carne seca refogada. É um prato supergostoso, e que eu não tinha… Eu falei: ‘Gente, como é que a gente não conhece um prato desse, sabe?'”.
Daí, surgiram outros pratos e convites para uma porção de eventos do movimento Negro, como a Feira Preta, por exemplo. E a Dandara começou a pensar na ideia de abrir o próprio negócio.
Dandara: “Porque eu vi que tinha demanda. Uma demanda que não estava sendo explorada, ainda. ‘Ai, mas o que é comida africana? Tem muita pimenta? Tem muito dendê? As pessoas não sabem o que é culinária africana e não sabem o quanto ela é próxima da nossa culinária'”.
Em 2017, ela viajou pela primeira vez para o continente africano: conheceu Angola e São Tomé e Príncipe. Cozinhou com chefs locais e saboreou de perto os pratos e ingredientes, que muitas vezes são os mesmos que usamos aqui, só que com outro nome.
A graviola, por exemplo. Em São Tomé e Príncipe, o nome é sape-sape.
dandara: “Tem muita coisa parecida realmente, só que às vezes a forma de fazer uma coisa ou outra pode ser diferente. Um prato que a gente usa três dentes de alho, eles vão usar 10… É mais ou menos assim. Eles usam realmente muito mais alguns ingredientes. É uma diversidade tão grande que é até difícil você falar em culinária africana. Não dá para você falar numa culinária africana porque cada país tem o seu prato e, às vezes, aquele mesmo prato é feito de forma diferente, eles têm as tribos, é muito diverso”.
Em agosto de 2018, o projeto Afro Gourmet virou restaurante, no Grajaú.
Dandara: “Eu diria que a culinária africana é uma culinária de muito tempero, de muita afetividade. Acho que é uma das coisas principais. Cozinha é afeto de uma forma geral, assim, eu acredito. Mas a culinária africana, pra mim, é uma coisa que enche meu coração de alegria, assim, sabe? É o máximo do afeto pra mim”.
Hoje em dia, ela serve pratos como o Feijão Nigeriano com Molho de Camarão, Polvo à Moda de São Tomé e Príncipe e Bobôti: um bolo de carne com frutas secas, da África do Sul.
DANDARA: “A gente tem o costume de não valorizar o que é nosso. E a culinária africana também é nossa. É importante a gente valorizar, sim, a culinária africana. Assim como tem vários espaços, a gente tem vários restaurantes italianos, vários restaurantes franceses… Por que não ter vários restaurantes dedicados à culinária africana? Acho que isso é importante porque tem público, sim, pra essa culinária. Eu acho que o mercado entendeu que a gente consome. Esse é um fato. E não entendia isso antes. Eles não entendiam que a gente tinha dinheiro e que a gente queria consumir. Queria consumir coisas que nos representassem de verdade, coisas que fossem, de fato, pra gente”.
Essa falta de representatividade a Dandara vê até hoje na gastronomia:
DANDARA: “A gente tem muitos chefs brancos famosos, de fato. A gente tem pouquíssimos chefs negros famosos. A cozinha sempre foi muito destinada às mulheres. E na época da escravidão, mulheres negras. A gente vê, não só, até no samba a gente vê muito isso né. Foi sempre muito marginalizado, quando iniciou por ser um ritmo negro. E quando os brancos começaram a fazer virou uma maravilha, né. Mas é, a gente vive num país racista mesmo, não tem jeito, infelizmente. É um país racista, e agente acaba tendo que lidar com esse tipo de coisa em todos os setores da comunidade”.
BIANCA: “Olha, Tiago, eu acho que a Benê com certeza foi uma pioneira. Eu acho que, até hoje, para uma mulher, negra, qualquer campo de trabalho é uma luta. Qualquer campo de trabalho é uma batalha. Conseguir um trabalho, se manter num trabalho, crescer num trabalho, é uma grande conquista”.
Aqui novamente a cientista social Bianca Briguglio, que pesquisou a vida da chef Benê Ricardo.
BIANCA: “Pelo que ela me contou da história dela, e todas as experiências que ela passou, eu acho que a Benê sofreu muito machismo, e ela sofreu muito racismo… E ela sofreu a combinação dos dois”.
Logo que a Benê se formou, em 1981, a primeira mulher brasileira a ter um diploma de chef de cozinha, ela foi fazer uma entrevista de emprego.
BENÊ: “Cheguei lá, botei minha carteira de trabalho, os documentos que o Senac me deu, ele falou ‘Hoje você vai limpar a cozinha, tá suja. Hoje ninguém trabalha é limpar a cozinha’. Eu falei ‘É? É, a sua cozinha está precisando mesmo de limpeza’. Limpei a coifa, lavei a cozinha, tirei tudo de dentro da geladeira, aquela imundície… Joguei fora… Quando terminou, ele falou assim ‘A senhora está contratada’. Eu falei: ‘Só que eu fiz curso de gastronomia. Eu agora quero seguir, ah, cozinheira. Não quero mais ser faxineira. Já fui muito’, falei pra ele. ‘ Agora não quero’. ‘Não, fica! Porque a gente vai…’. ‘Não, não quero. Tchau! O senhor devia de ter me respeitado. Mas a sua cozinha estava precisando mesmo de uma limpeza’. Eu sempre fui assim, viu?”.
Um tempo depois, ela acabou conseguindo emprego na cozinha de um grande hotel, em São Paulo.
BIANCA: “Ela era supervisora de cozinha lá, e ela começou a arrumar, vamos dizer entre aspas, ela começou a arrumar muita encrenca lá. Porque a Benê era uma pessoa muito preocupada com a coisa de limpeza, com as normas de higiene, com a qualidade dos alimentos. E aí, ela arrumou uma briga lá por causa disso, e todos os cozinheiros decidiram boicotar o trabalho dela”
BENÊ: “No dia seguinte, eu cheguei para trabalhar, no quadro de memorando tinha um padre benzendo uma bruxa escrito ‘Chef Benê’. Eu nunca imaginei ser chef na minha vida, aquela época, eu era só supervisora e cozinheira.
BIANCA: Benzendo uma bruxa?
Uma bruxa. Um padre benzendo uma bruxa escrito ‘Chef Benê’. No dia seguinte, eles me boicotaram em todo o meu trabalho. Veio só o Toninho. Não veio ninguém. Eu fui no almoxarifado, naquela época era forte, saco de feijão…
BIANCA: Fez sozinha?
Chegou 11 horas eu falei ‘Ô, meu Deus, obrigado’, tava tudo pronto. Você não sabe o que eu já passei, mas Deus é tão forte que eu consegui fazer tudo… 11 horas o refeitório já estava com a comida lá”.
A Benê terminou esse dia no hospital.
BIANCA: “O que eu observei é que a Benê aparecia em revista, em blog da internet, sempre contando essa história de vida, que era essa história desse mito heróico da menina que ficou órfã, que era empregada doméstica, e que o presidente Geisel deu uma bolsa para estudar no Senac. Mas que essa história não era a história completa, entendeu? Então ninguém problematizava o racismo e o machismo que a Benê viveu. Eu pergunto pra Benê muito claramente, falei: ‘Benê, você alguma vez sofreu racismo?’. Aí ela me respondeu: ‘Muito’. E depois ela falava coisas… Ela fez uma frase que me marcou muito que ela falou assim: ‘Além de mulher, negra’”.
A Benê continuou fazendo uma porção de cursos para se aprimorar, comandou grandes cozinhas e, em 1986, montou seu próprio buffet.
Virou consultora e professora de Gastronomia em universidades.
Ganhou prêmios.
Por muito pouco, em 2001, a chef Benedita Ricardo não foi a representante do Brasil na final do Bocuse D’Or, na França, considerado a “Copa do Mundo” da gastronomia.
Em 2006, ela lançou um livro: “Culinária da Benê: Dicas e segredinhos para um dia-a-dia mais prático, econômico e saboroso”. Era muito querida por alunos, ex-alunos e por outros chefs de cozinha.
CIDINHA: “A chef Benê era especialista em cozinha brasileira. Ela dava muito valor às nossas comidas, nossos produtos, né, nacionais”
Essa é a chef Cidinha Santiago, 61 anos. Ela também tem uma história de vida incrível. Mulher negra, mineira, a chef Cidinha trabalha há mais de 30 anos em programas de TV. Começou na “Cozinha Maravilhosa da Ofélia”, na TV Bandeirantes, em 1985. Ela era muito amiga da Benê.
Cidinha: “E ela fazia uma comida, como boa mineira, fazia uma comida muito boa… Estamos no Brasil e o Brasil não dá tanto valor à nossa comida brasileira… O povo brasileiro, em si, principalmente mineiro, a gente cozinha, todo mundo cozinha… Eles acham que é assim: de repente, é uma coisa normal, né, ou… comum”
((( Áudio de programa de TV )))
“Como é que tá o nosso tender?
Dá uma olhada nele…
Lindão, bonitão… Nossa… Olha só a ceia da Benê! Isso é uma das sugestões da chef Benê Ricardo que vem hoje aqui no nosso programa, é, montar um prato tão bonito quanto esse… Vou cortar uma fatia desse tender…
Você vai cortar, Dani?
Vou cortar aqui atrás… pedacinho…
Tá crocante, hein?
Olha, espero que vocês tenham gostado da receita da Benê…
Eu agora vou querer…
Benê…
…ouvir a sua, né?
…Muito obrigado pela sua visita…
…brigada, eu que agradeço de vocês alembrar de mim, porque vocês se alembra de mim quando eu tô viva porque depois alembrar depois que morre…
Ha ha Vai viver muito tempo ainda, viu Benê? Vai viver muito tempo, brigado pela sua visita”…
Em 31 de março de 2018, a chef Benedita Ricardo, a Primeira-Dama da Gastronomia Brasileira, faleceu em consequência de um câncer no pâncreas.
((( Áudio da Ana Maria Braga )))
“E falando em cozinha, e em coisa boa, a cozinha brasileira perdeu uma graaande culinarista. A Benê Ricardo, Bené, ela passou algumas vezes aqui pela nossa cozinha do programa, e ela sempre foi uma delícia de pessoa. Sua trajetória é liiiinda. Ela foi a primeira mulher no Brasil a estudar gastronomia, e a receber o diploma da 1ª cozinheira chef, né? Trabalhou em grandes hotéis de São Paulo, e nessa visita aqui, no “Mais você”, ela fez pra gente uma maravilha de queijo com xerém de caju… E Benê, nos últimos tempos, lutava contra um câncer de pâncreas, morreu no sábado, aos 74 anos de idade, lá em São Paulo, então a toda a família da Benê o nosso respeito e solidariedade, tá bom? Vai com Deus, Benê, olha que mão linda que ela tinha, ela era um espetáculo…”
O Negra Voz Podcast volta na semana que vem.
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Produção, edição e roteiro são meus, Tiago Rogero.
Finalização, Maurizio Belli.
A trilha de abertura e encerramento é de Victor Rodrigues Dias e Felipe Kneipp.
Até semana que vem.